Outrora a cidade cingia-se a um velho burgo medieval, espartilhado por muralhas visigóticas e erigido de um afloramento granítico, destacando-se altaneiro por entre as serranias beirãs do âmago da terra mãe.
A névoa matinal caía densa e persistente
sobre a Rua Direita, salpicada por uma morrinha gélida que parecia tolher as
próprias pedras da vetusta calçada.
Arquejante, Albino endireitou-se por
momentos, as manápulas crespas e enrijecidas pelo frio agarradas ao cabo da pá
de valador, aspirando dolorosamente o ar gélido da manhã. Atarracado de corpo,
devia também muito pouco à inteligência e viera ao mundo mais despejado pela
natureza do que parido do ventre de uma mãe. Pesaroso, mirou com tristeza e revolta a
rudeza das palmas da mãos e os seus dedos grossos e nodosos e pensou na Maria
que já se queixava há tempo demais da sua aspereza, furtando-se esquiva aos
seus avanços.
Em redor o velho casario espreguiçava-se ainda meio dormente, despertando paulatinamente com crescente bulício madrugador. Cruzavam-se sons e cheiros, frases entrecortadas por saudações matinais e alguns passos ora apressados ora indolentes. Era o percutir na latoaria, o doce odor dos “Viriatos” franqueando as portas da padaria e até o tilintar dos copos no tasco da esquina, emborcados pela malta mais madrugadora.
Alheio a tudo e já atolado até aos joelhos
numa lama nauseabunda que surgira não se sabe de onde depois de levantadas a
primeira meia dúzia de lagetas de granito que capeavam o velho canal de
esgotos, Albino repetidamente cravava nela a sua pá, num misto de raiva e
desespero. Em surdina, maldizia o
arquitecto romano que engendrara tamanha maquinação enquanto zurzia à chicotada
os costados de algum seu antepassado, pobre escravo da raça ibérica. Não tinha
mais dúvidas. Deuses e forças da natureza haviam-se aliado numa cruzada
implacável contra ele, servente empossado valador do quadro, nas profundezas da
complexa teia hierárquica dos serviços municipalizados da cidade.
Entretanto a névoa ia-se levantando vagarosa,
tal como a irritante morrinha minguando, abrindo agora alas à intromissão de
uns tímidos raios solares. A lama
misturara-se com o esgoto, endurecendo e produzindo um cheiro pútrido e
nauseabundo, empestando a atmosfera metros e metros em seu redor. Zombeteira, a
freguesia assomava avinhada à porta do tasco, assistindo numa crescente onda de
gozo desenfreado e mal orquestrado pela Miquelina, mulher da “vida artística”,
ao esforço inglório do valador em desatar aquele malfadado nó cego do destino.
Nisto, chega o encarregado da brigada, o
considerado Sr. Sá, austero zelador dos fontanários da cidade e rede de esgotos
públicos, inquirindo meio furibundo :
-
Então meu malandro, já desencravaste o “alqueduto”? Olha que a sanita do
consultório do Dr. V. já está pelas bordas!
Albino, tremia acometido de suores frios.
Os acontecimentos já ultrapassavam largamente o seu modesto entendimento.
- E o MC. ?! Já cá esteve a inspecionar a conduta? Fuzilava
novamente o Sr. Sá.
Albino ignorava quem era o MC. Mas, que lhe
importava o MC.? O Sr. Sá era a sumidade em pessoa, mandatado pelo próprios
desígnios divinos e até o Presidente da Câmara, esse ilustre desconhecido de
quem ignorava o próprio nome não tinha qualquer voto na matéria. Temeroso,
redarguiu num súbito assomo de coragem :
- Mas a trampa não anda nem desanda! Se
calhar é preciso levantar mais algumas pedras? Se o Xico cá viesse ajudar com a
alavanca de ferro …
- Cala-te meu quadrúpede, filho de uma
rameira da Rua Escura - verociferava-lhe tonitruante o Sr. Sá, para logo de
seguida levar desesperado as mãos à cabeça – E o MC! Que chega aí não tarda
nada!?
Num misto de respeito e terror quase
supersticioso, baixou as próprias orelhas num resquício de instintos caninos e
rilhando a dentadura apontou com a ponta da pá à cloaca imunda, fonte de todos
as desditas que sobre ele despencavam naquela manhã de inverno.
Rua Direita abaixo, aproximou-se o
Engenheiro MC, a gabardine bege e o boné de feltro castanho, reforçando o seu
ar discreto e distinto.
Abeirando-se da escavação, inquiriu
franzindo ligeiramente os sobrolhos com ar preocupado :
- Bom dia – então qual é o problema?
Albino levantou os olhos, mirando
estupefacto o recém-chegado. Parecia-lhe irreal a súbita aparição daquela
figura, como a barrar-lhe por completo as ínfimas probabilidades de escapatória
do inferno em que se via mergulhado.
- Já agora?! Mas quem és tu?!
- Eu sou o MC – respondeu o engenheiro à
queima-roupa, quiçá surpreendido pela ignorância do valador.
- Ai tu é que és o MC. !? Estás f…..
pá ! Já cá esteve o Sr. Sá três vezes à tua procura !!!
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